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Sobre reencantar as águas caldenses

Stélio Marras *

Tenho a impressão de que quando nos colocamos hoje na tarefa de pensar o que pode vir a ser, num futuro próximo ou mais distante, o turismo de uma cidade, como Poços de Caldas, na vinculação com suas águas especiais, essa tarefa parece se traduzir na seguinte pergunta: como reencantar essas águas de modo a que elas voltem a ser virtuosas, à imagem do passado, e assim reativar o turismo na cidade balneária? Com base no longo trabalho que pude realizar sobre esse passado das águas virtuosas em Poços de Caldas , eu então partiria dessa pergunta, mas para, no final, não exatamente respondê-la, mas antes poder perguntar a própria pergunta, isto é, perguntar sobre sua real pertinência.

Para isso, tenho que fazer uma breve retomada das antigas condições que deram existência à estância balneária de Poços de Caldas, a mais festejada da história brasileira e que viveu seu auge nas primeiras décadas do século XX. Eu começo me servindo de uma imagem-guia do escritor poçoscaldense Jurandir Ferreira– a do “binômio feliz” de Baco e Esculápio, responsável pelo sucesso das antigas cidades hidroterápicas. É no seu romance O céu entre montanhas que Jurandir adianta, no plano da ficção, o mais factível sobre o funcionamento das estações balneárias. Ele ali simula o desastre de uma cidade de águas quando os princípios de Baco se divorciam dos princípios de Esculápio, assim se desfazendo o “binômio feliz” que sustentava a frequência das estâncias. Ou seja, não bastava o encantamento científico das águas, conferido pelas ciências médicas de então (que inclusive fundou a especialidade médica da Crenoterapia, hoje ausente do que passou a ser central nas terapêuticas acadêmicas e científicas). Era preciso que Esculápio desse às mãos a Baco, ao caráter festivo das estações, à terapia do lazer (que os jogos de cassino tanto encarnavam). Era preciso, então, que Baco e Esculápio se retroalimentassem, que um e outro se reunissem de modo indelével para que o caráter virtuoso das águas emergisse daí. Por isso mesmo, os jogos de cassino da noite e os banhos sulfurosos termais do dia não entravam em contradição. Ao contrário, lazer e cura apareciam como faces de uma mesma realidade, essa que a um só tempo, numa só laçada, cura o corpo e o espírito.

Eu mencionei esse entendimento do “binômio feliz” de Jurandir Ferreira, mas poderia mencionar o mesmo entendimento, já em termos médico-científicos, presente nos escritos do próprio Pedro Sanches de Lemos, ele que foi o médico mais famoso dos tempos de fundação de Poços de Caldas, e que se dedicou a desenvolver a terapêutica das águas. De todo modo, como eu tento mostrar lá no meu mestrado, esse binômio de Baco e Esculápio se desdobra num polinômio, uma vez que o lazer e a cura compreendem múltiplas atividades. E compreende, com igual importância, um tipo muito específico de urbanismo, esse de uma vila balnear que devia ser necessariamente aprazível e pacata, já que a serenidade e a atmosfera de quietude deviam prevalecer na paisagem da cidade de cura. O furor dos bailes e dos jogos podia até participar da recuperação de enfermos, já que integrava o programa terapêutico das distrações, mas suas atividades eram restritas aos recintos fechados do cassino e das casas de show. Para o bem dos convalescentes, aquelas não eram atividades que se derramavam nas ruas. Quer dizer, a eficácia do “binômio feliz” dependia de um equilíbrio muito sutil entre os humores mundanos de Baco e os humores monásticos de Esculápio. O sucesso a um só tempo terapêutico e turístico das estações de águas sobrevinha precisamente desse equilíbrio muito tênue e sutil entre ambos os princípios . O protagonismo médico-científico das águas – elas então tomadas como virtuosas e por isso formadoras da cidade – dependeu portanto da série de elementos coadjuvantes que aqui eu resumo como os princípios de Baco. Tudo assim reunido, e bem reunido, é que determinou a fé e a eficácia das curas.

E eis que, na história de Poços de Caldas, esse binômio da cura e do lazer começa a se desfazer a partir sobretudo da década de 1940 com a proibição dos jogos de cassino, com as novas opções de lazer, com o surgimento da penicilina e outros medicamentos sintéticos, enfim com a crescente complexidade das estruturas sociais no Brasil, sobretudo a emergência das classes médias e do proletariado urbano no curso da Era Vargas, que fez com que se diluísse ou se dispersasse aquela “mentalidade de grupo fechado” das elites (como assim denominou Antonio Candido a propósito da “família balneária”, expressão esta de João do Rio ). Ora, sem esses coadjuvantes, o protagonismo da água não tinha mais por onde se sustentar. E então as águas deixaram de curar, deixaram de ser virtuosas. Desde então, é verdade, Poços de Caldas conheceu um crescente abalo no seu turismo. Mas conheceu também um crescente desenvolvimento, agora polarizando o comércio da região sul-mineira e também se industrializando (como a indústria da mineração, p. ex.). Se esse desenvolvimento não se explica sem os alicerces fundadores da cidade em torno das águas, contudo essa nova Poços de Caldas só conseguiu encontrar novos rumos (e se tornar muito mais complexa, mesmo autônoma e democrática em termos sociais) quando se desvencilhou daquela fonte majoritária de recursos advindos do turismo hidroterápico das elites brasileiras. Parece um paradoxo, mas que se desfaz no curso da história. É como fosse preciso que o filho matasse simbolicamente o pai como condição para seu desenvolvimento autônomo, ainda que esse desenvolvimento não se explique sem a origem do pai.

Como então, hoje, pensar o reencantamento das águas? Bem, é preciso admitir que para que elas voltem a ser virtuosas, medicinais, seria preciso um novo olhar, um novo investimento científico da medicina sobre elas. Mas eu mesmo, confesso, não consigo vislumbrar interesse médico, científico, e menos ainda da indústria farmacêutica, na reativação das águas. Mais fácil, rápido, e sobretudo lucrativo, é administrar medicamentos sintéticos para aliviar ou curar achaques. Diferentemente do que ocorre no Velho Mundo (como nas estações balneárias ainda em funcionamento na Europa – Vichy, p. ex.), aqui no Novo Mundo, especialmente nos países mais industrializados e urbanizados, prevalece, como se sabe, um apego muito grande pelas últimas novidades, pelas ditas tecnologias de ponta, incluindo aí as médicas e científicas. Como, portanto, esperarmos que as ciências médicas devotem atenção e interesse a essas águas caldenses dos trópicos? É que esse trabalho de reencantar as águas é um trabalho médico e científico. Sem a medicina e as ciências, tenho a impressão que qualquer outro esforço por reativar a virtude das águas não vai passar de nostalgia ingênua ou anacronismo. Estou aqui sugerindo enfaticamente que o encantamento das águas depende da dita objetividade científica que uma medicina interessada viesse a dedicar sobre elas. Isso é assim porque as ciências são centrais no nosso sistema de crenças. São tão centrais que nem dizemos que acreditamos nas ciências, já que as ciências não aparecem como objeto de crença, e sim de conhecimento.

Reitero, então, que não vejo esse acontecimento se inscrever no campo dos possíveis – não ao menos num futuro próximo ou até onde a previsão, hoje, permite se estender com alguma segurança ou validez. Mas, digamos, vamos aqui nos inspirar em Jurandir Ferreira para simular o real no plano da ficção. Vamos então imaginar que a medicina científica se volte pesadamente para as águas no intuito de restituir as virtudes medicinais e científicas delas. As águas então voltariam a curar e assim reativariam o turismo da cidade balneária? Pelo exposto, já posso antecipar que não. Porque essa medicina – a história das águas ensina – se mostra particularmente holista, isto é, muito dependente da integração com outros fatores para que sua eficácia se verifique. E aqui voltamos ao imperativo de esposar os princípios de Esculápio aos princípios de Baco. Só a integração desses princípios – como a aliança entre as propriedades bioquímicas das águas e o lazer e as distrações amenas – garantiria as chances reais de cura ou restabelecimento da saúde. Mas já não vivemos na pequena escala de uma vila balneária. Poços de Caldas não é mais aquela estância que podia equilibrar a vida mundana e a vida de retiro medicinal. Desde o emblemático Edifício Bauxita, erguido ainda nos anos 1940, tem início o processo de verticalização da cidade. Ainda mais, a cidade se tornou pólo comercial da região do sul de Minas, conheceu alguma industrialização, suas ruas se encheram de automóveis e ruídos, sua população cresceu enormemente desde então, sua paisagem humana e não-humana se modificou muito – o urbano excedeu o bucólico. Não há mais, portanto, um ambiente propício que permita cimentar sentidos comuns entre o lazer medicinal e a terapêutica das águas. Não em Poços de Caldas. Mas talvez sim – nessa simulação que aqui esbocei – quanto a outras cidades hidroterápicas que não conheceram o desenvolvimento de Poços de Caldas. Caxambu, por exemplo. Por aí se vê que é sempre preciso pensar a particularidade dos casos e evitar formulações gerais, como imaginar uma mesma política pública para todas as cidades que se inscrevem no chamado circuito das águas. Essas cidades são muito diferentes entre si – razão por que diferentes também devem ser as políticas que se projetem sobre elas.

Eis aí o suficiente para que eu terminasse essa reflexão num tom pessimista com relação ao reencantamento das águas de Poços de Caldas como estratégia central para a reativação em grande escala do turismo na cidade. Mas eu não me alinho a esse pessimismo. E não porque eu ainda acredite nessa reativação e a projete num futuro incerto e impalpável. Ao contrário, entendo que não devemos ser pessimistas porque a cidade aprendeu a viver sem depender unicamente do turismo da “família balneária”. Para seguir utilizando essa imagem, eu diria que a família se expandiu, se tornou socialmente muito mais complexa, ramificada e difusa. A cidade não vive mais exclusivamente para os de fora, mas soube incluir os de dentro. Esses de dentro, que antes eram personagens periféricos durante as estações, e esquecidos depois delas , passaram o ocupar o centro pujante da sociedade, da economia, da cultura e da política de Poços de Caldas. Acho muito melhor darmos adeus ao tempo dos elegantes de estação para poder saudar, agora sem nostalgia ou anacronismo, os novos tempos de inclusão social da cidade. Portanto, a pergunta que hoje fazemos sobre como reencantar as águas parece deslocada. Ela arrisca mascarar outros encantamentos que a cidade soube criar. Quanto às águas, pergunto agora, também elas não saudariam o devido descanso que merecem em tempos de sustentabilidade e atenção ecológica contra o perigo, cada vez mais crescente, de exaurirmos os recursos naturais?
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1 Stelio Marras é professor de antropologia do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).
2 Marras, Stelio: A propósito de águas virtuosas: formação e ocorrências de uma estação balneária no Brasil. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2004.
3 Ferreira, Jurandir: O céu entre montanhas. São Paulo, Martins Fontes, 1948.

5 Rio, João do. A correspondência de uma estação de cura. São Paulo, IMS/Scipione, 1992 (1ª edição: 1917). A expressão de Antonio Candido consta em seu prefácio para essa edição de 1992 do livro de João do Rio.
6 A relação desigual entre os de dentro e os de fora me parece tema constante dos escritos do nativo poçoscaldense Jurandir Ferreira. Ver do autor, p. ex., Um ladrão de guarda-chuvas. São Paulo, Nova Alexandria, 1995. E tema que também aparece em João do Rio (A correspondência de uma estação de cura, cit.), já na ótica de um escritor de fora.

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