Colaboraboradores convidados

DILEMAS – Stephen Little

Amizades vêm em todos os tipos e formas. Se você olhar mais atentamente para seus amigos, poderá começar a ver a amplitude das conexões que fez ao longo dos anos. Há aqueles que são meros conhecidos – amigos que você fez através de algum interesse ou atividade em comum, como a academia, por exemplo –, com os quais, fora daquele ambiente, não há algo mais profundo. Todo mundo tem, ainda, alguns “contatos úteis” que podem ser acionados quando precisamos de conselhos ou melhorar nossas perspectivas de emprego. Há aqueles que regam nossas plantas quando viajamos, mas com quem nunca compartilharíamos um dilema ou crise pessoal. Provavelmente, temos
poucos amigos em quem realmente confiamos, porque são eles que normalmente escutam e se importam conosco, e há aqueles que são tangivelmente mais próximos do que os irmãos. Por fim, existem os que têm uma tendência particular a só nos trazer estresse e sofrimento. Todos esses tipos de amizade convivem com três outros grandes laços: familiares, românticos e de negócios, que são como grandes forças na vida. Trazem momentos intensos de alegria; contudo, por mais que sejam fantásticos, podem – especialmente quando perturbados – nos fazer mergulhar em profundidades terríveis de sofrimento, às vezes em um curtíssimo espaço de tempo. É quando ofendemos velhos laços familiares ou ameaçamos o status quo dessa relação que temos a seguinte percepção: talvez eles não nos ofereçam ou permitam a total liberdade de sermos nós mesmos, conforme imaginávamos. Na amizade, entretanto, as coisas não poderiam ser mais diferentes. O ensaísta americano Ralph Waldo Emerson uma vez disse: “Um amigo é uma pessoa com a qual posso ser sincero”. Esse é o potencial da amizade verdadeira, é o motivo pelo qual nos esforçamos tanto em desenvolvê-la. Por trás desse tipo de relação mais próxima há a busca consciente por ser realmente visto e valorizado e por ver e valorizar o outro como ele realmente é. Agora, pode ser que, nas escolhas feitas, você tenha pelo menos uma pessoa que realmente considere um amigo – alguém com quem é possível ser você mesmo. Se for assim, ótimo! Mas isso nem sempre acontece, já que boa parte dos amigos que escolhemos não são realmente amigos. Isso significa que ter uma crise de amizade faz parte da natureza dessa relação. É comum, por exemplo, quando estamos mais velhos, ao relembrarmos as amizades que fizemos, termos sentimentos como decepção, frustração e até irritação em relação a essas pessoas. O poeta francês Jean de La Fontaine afirmou: “Todos se dizem amigos… nada é mais comum do que o nome e nada é mais raro do que a coisa em si”. Como essa triste percepção acontece? Quando não há uma conexão familiar, nenhum interesse romântico ou um acordo de negócios que possa fazer com que você tenha a oportunidade de conhecer o outro mais profundamente. Nesses casos, estabelecer uma amizade séria é menos provável. Ela fica assim relegada a ser o elo mais fraco e perde a atração e o valor. Dessa maneira, a família, o casal romântico e as relações de negócios podem facilmente se tornar parceiros ciumentos. Acabamos “não tendo tempo” para ver nossos amigos e, com o passar dos anos, as amizades se tornam uma série de encontros leves e descartáveis em que há pouco cuidado real e interesse mútuo. Quando chegamos a esse ponto, a ideia de se comprometer, participar ou se importar com a vida de um bom amigo não parece uma opção atraente. E, dessa forma, não confiamos mais nessa parceria. Ela fica fraca – se torna apenas um nome, como diz La Fontaine. Talvez isso explique por que, hoje em dia, tanta gente encontre seu melhor amigo em um poodle ou um psicoterapeuta.

Relações mais profundas
Não vou sugerir que nossas amizades devam substituir nosso poodle ou psicoterapeuta, se tivermos um. Entretanto, quero o estimular a pensar mais em por que amizades são importantes e como ter relações significativas baseadas em confiança e amor de verdade. Quando nossa busca pela amizade não depende de interesses familiares, desejos românticos, nem de avanço na carreira, o fruto disso será a liberdade da autenticidade que ambas as partes sentirão na presença uma da outra. Caso você veja essa possibilidade, o próximo passo será aprofundar as boas amizades que já tem ou persistir em sua busca de uma. Vale saber que isso pode demorar para acontecer e gerar algum tipo de decepção. Mais uma vez, Emerson tem algo a nos dizer. Ele não aconselha ficar de cabeça quente ou combativo ao enfrentar uma fase difícil em nossas amizades. Não diz que devemos escrever e-mails a quem tem mau desempenho e exigir novos níveis de confiança e conteúdo estimulante, nem acha que precisamos esperar até que um tipo melhor de amigo venha. Simplesmente sugere que “a única maneira de ter um amigo é sendo um”. Diferentemente das outras três relações que mencionamos, a maturidade relativa de uma amizade depende menos de conseguir algo da outra pessoa e mais de lhe dar o espaço e a liberdade para ser ela mesma. Para desenvolver isso, é preciso tempo e esforço. Normalmente cito Jalaluddin Rumi, o místico sufi, quando dou minha aula sobre amizade na The School of Life. Ele escreve: “A beleza de costurar cuidadosamente uma camisa é a paciência que isso contém. Amizade e lealdade têm a paciência como o ponto forte de sua conexão”.

Por natureza, nenhuma relação humana é fácil. O psicólogo James Hillman disse: “Você não pode ter confiança sem a possibilidade de decepção”. Ambas caminham juntas. A qualidade de qualquer conexão humana duradoura depende menos da total ausência de decepção e mais de como cada pessoa lida com o fato de se sentir desapontada. No processo de duas pessoas encontrarem com sucesso o caminho para saírem da crise, algo terá de morrer, e uma sensação mais madura e sábia de confiança surgirá. No caso da amizade, acredito que esse processo tenha muito mais potencial para ser concretizado quando comparado com relações familiares, românticas ou profissionais. É na amizade real, com todas as suas imperfeições, que encontramos menos perigo de ofender velhos laços de sangue ou ameaçar o status quo. O contrato fundamental é menos vinculado pelas pressões não declaradas que nos prendem à inconsciência e à repetição neurótica. Por esse motivo, o potencial para sermos nós mesmos existe mais plenamente na amizade do que em qualquer outro tipo de relação. Você pode até perceber que uma boa amizade o ajudará a ser uma presença mais saudável nos outros tipos de relacionamento em sua vida.
A série dilemas é uma parceria entre a revista vida simples e a The School of Life e traz artigos assinados por professores da chamada “Escola da Vida”. A série tem como objetivo nos ajudar a entender nossos medos mais frequentes, angústias cotidianas e dificuldades para lidar com os percalços da vida.
A The School of Life explora questões fundamentais da vida em torno de temas como trabalho, amor, sociedade, família, cultura e autoconhecimento. Foi fundada em Londres, em 2008, e chegou por aqui em 2013. Atualmente, há aulas regulares em São Paulo e no Rio. Para saber mais: theschooloflife.com/saopaulo.
Stephen Little é irlandês, radicado no Brasil, físico, budista ordenado, especialista em atenção plena (mindfulness) e um dos pioneiros na introdução do método por aqui. É também responsável pela formação dos professores da The School of Life no Brasil.

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