Polícia

Por que desmilitarizar a polícia militar é a melhor opção para Segurança Pública?


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Na semana passada, escrevi um artigo no qual tentei explicar porque o militarismo era uma ideologia inadequada para a atividade policial. Propositalmente, para não me alongar muito, apenas problematizei a questão da militarização, sem dar maiores detalhes a respeito de uma nova proposta.

Agora, conforme prometido, neste artigo, tentarei esclarecer o que significa a desmilitarização, propondo um novo conceito comunitário de policiamento. Porém, para entendermos os motivos da desmilitarização e o que significa, exatamente, a função policial, precisamos, primeiro, compreender os conceitos de segurança pública e manutenção da ordem.

Nesse sentido, é importante analisar o que nossa Constituição diz sobre o tema. E, infelizmente, ela abordou essa questão de forma bastante rasa (no art. 144).

Isso porque o Texto Constitucional se limitou a tratar do tema apenas no seu aspecto institucional, ou seja, restringiu todo o debate sobre a segurança pública a uma questão exclusiva de polícia, apesar de dizer que ela é um “direito e responsabilidade de todos”. Além disso, pecou ao definir, de forma genérica demais, que a segurança pública “é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.

Vale lembrar que essa limitação foi feita enquanto o país saía de um dos períodos mais tenebrosos de sua história: uma Ditadura Militar que violou sistematicamente os direitos da população sob argumentos também genéricos de segurança e ordem.

E, apesar da redemocratização, o sistema de segurança pública e as estruturas policiais mantiveram-se praticamente inalterados.
Podia-se, talvez, pensar que o debate acerca da segurança pública evoluiria em um país com a democracia reestabelecida. Mas isso não aconteceu.

Apesar da Constituição ter sido promulgada em 1988, foi só em 2000 que surgiu o primeiro Plano Nacional de Segurança Pública (I PNSP). Mais tarde, em 2003, surgiria o Programa de Segurança Pública para o Brasil e o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e, em 2007, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci).

Esses poucos programas, porém, mantiveram o debate acerca da segurança pública muito restrito ao aspecto institucional e, mesmo assim, propondo medidas pouco efetivas como pequenas mudanças nas políticas educacionais e profissionalizantes dos policiais, inserindo, de forma tímida, a questão dos Direitos Humanos entre eles.

Não se abordou uma mudança significativa na estrutura das polícias brasileiras e nem se criou uma nova diretriz nacional para a segurança pública que fosse diferente da do período da Ditadura.
E seguimos pautados em um conceito genérico de segurança e ordem que pode se amoldar aos interesses de qualquer um que tenha o poder de controlar as polícias.

Porém, a segurança pública não é um conceito assim tão genérico como poderíamos supor pelo artigo 144 da Constituição. Na verdade, o próprio Texto Constitucional trata a segurança como um direito social garantido em seu artigo 6º.

Assim, como diz o professor Bruno Rijo Lins, por ser um direito fundamental, a gestão da segurança pública deve repudiar o autoritarismo e a violência legal, submetendo-se aos valores democráticos. Desse modo, ela deve ser garantida através do reconhecimento do cidadão como um sujeito político e do espaço público como um local legítimo para a resolução de conflitos através do debate.


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Essa definição de segurança pública, porém, contrasta com o fato de que, no Brasil, entregamos a manutenção da ordem a uma polícia militarizada, cuja formação de seus membros se dá de uma maneira fechada ao restante da sociedade e com uma ideologia que preza mais pela obediência que pelo debate.

Além disso, para vários estudiosos como Pedro Paulo Cardoso e Fábio Comparato, a gestão da segurança pública deve reconhecer os Direitos Humanos, a diversidade étnica e cultural e a divisão de classes de seu próprio país quando analisar a implementação de suas políticas. Tais valores, porém, como demonstrado no artigo anterior, são conflitantes com o ambiente fechado e propício ao preconceito das Academias Militares.

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Aliás, essa mesma cultura militar, que monopoliza o debate sobre segurança, acaba por polarizar as discussões entre políticas policiais repressivas (preferidas por militares) e preventivas. Porém, na verdade, o debate deveria entender a complexidade do assunto para compreender que a manutenção da segurança extrapola as instituições policiais, fazendo-se através da interatividade de vários outros atores da sociedade.

E é nessa mudança de cultura que está o processo de desmilitarização.

Comparato define a desmilitarização, não só da polícia, mas do Estado brasileiro, como a supressão de órgãos militares e paramilitares da estrutura estatal. Desse modo, a manutenção da ordem pública interna seria atribuição de uma autoridade policial com políticas civis, enquanto a segurança externa continuaria sendo uma responsabilidade das Forças Armadas.

Esse pensamento tem relação com duas diferentes visões que podemos ter sobre a polícia.

A primeira seria a de que as polícias atuam para prestar serviços à população. Este sentido, ligado à comunidade, está de acordo com a ideia de que a segurança pública é um direito fundamental dos cidadãos. É uma ideia que poderia ser relacionada ao conceito de policiamento comunitário.

A segunda é a visão de que a polícia nada mais é do que uma força a serviço do Estado, sendo, nesse caso, desviada de suas funções originais de garantir a segurança pública e auxiliar a justiça penal.

Esta segunda visão, para Luis Fernando Lima, delegado-corregedor e professor da Academia de Polícia em São Paulo, apresenta tendências à militarização, um processo que mostra que as polícias têm cada vez mais se aproximado da função de servir ao Estado do que de prestar serviços à comunidade. Algo compatível com a característica de isolamento dos militares mostrada no artigo anterior.

Maria Eugênia Telles vai além e afirma que o militarismo aplicado à função policial é uma negação dos ideais republicanos e democráticos, representando uma ameaça ao criar uma polícia imune a mecanismos de controle social. Algo que tem muito a ver com o período da Ditadura Militar, quando as polícias do país absorveram a Doutrina da Segurança Nacional, passando a incorporar a chamada “ideologia do inimigo”.

Assim como vários outros estudiosos, ela afirma que o serviço policial tem natureza essencialmente civil, devendo obediência aos princípios administrativos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade e da publicidade. E só neste último já temos uma boa ideia de como as instituições militares passam por cima destes princípios, afinal, são instituições bastante fechadas à sociedade civil, com poucos mecanismos de transparência e participação popular.

Além de todos esses problemas, Maria Telles ainda lembra que o sistema militar é extremamente caro para os cofres públicos. Sua longa escala hierárquica, onde todas as ações ficam condicionadas a ordens superiores, torna o serviço policial muito lento e ineficiente.

Seu argumento encontra fundamento nos números, já que somos um país que gasta R$ 24 bilhões em policiamento, contra apenas R$ 1,3 bilhões em inteligência.

E esse gasto todo não parece estar surtindo efeito na “manutenção da ordem” do país, muito menos na redução das taxas criminais.
Fruto de uma visão errada que misturou as funções das Forças Armadas com as funções essencialmente policiais. Nesse ponto, o ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, Luis Eduardo Soares, pontua bem a diferença dessas atividades.

Ele afirma que o Exército é responsável pela defesa da soberania e do território nacional, devendo estar preparado para o enfrentamento bélico a qualquer momento. Assim, o Exército trabalha com a metodologia do “pronto emprego”, ou seja, deve estar sempre pronto para conseguir deslocar com rapidez um grande número de pessoas e recursos para o local de enfrentamento. Para essa função, a concentração decisória e a hierarquia rigorosa, típicas do militarismo, são uma forma de aumentar a eficiência.

Diferente da polícia, que deve se encontrar na rua de modo ostensivo e preventivo para garantir direitos da sociedade através do cumprimento de legalidades, devendo prover um serviço à cidadania.

Os enfrentamentos em cenas de guerra, apesar de corriqueiramente televisionados, representam uma parte mínima da atividade policial. Por isso, não há razão para a aplicação da metodologia militarizada, que acaba sendo inadequada para as funções comuns da polícia.
Nesse caso, faz muito mais sentido a aplicação do conceito de policiamento comunitário.

Assim, o policial deve ser compreendido como um gestor local da segurança pública, analisando os problemas e as prioridades de uma comunidade através do convívio próximo e direto com estes cidadãos. A partir daí, o diálogo entre essa nova polícia e os outros setores governamentais abriria espaço para novas políticas de segurança pública com características mais interdisciplinares.

O policiamento comunitário que constatasse, por exemplo, que a violência de uma determinada localidade está ligada a falta de espaços de lazer nas redondezas, poderia servir de canal de comunicação entre a comunidade e o Estado para que ali fosse implantada uma política pública que suprisse essa carência. Porém, para que o policial consiga se aprofundar em uma comunidade a esse ponto, é preciso que todo o aparato policial tenha superado a lógica militarista que trata os próprios cidadãos como inimigos.

Isso seria possível através da implantação do conceito de policiamento comunitário, que nada mais é do que um modelo de polícia descentralizada e com trabalho local que desenvolve funções de integração social, mediação e negociação de conflitos interpessoais.

E isso não é nenhum papo idealista demais nem coisa de outro mundo
Segundo Thomas Feltes (e vários outros estudiosos do tema), é um modelo que teve sucesso em países europeus, ou, ainda, no Canadá. Nesses países, essa estrutura de policiamento possibilitou que o crime passasse a ser visto em suas causas estruturais, deixando de centrar suas políticas de segurança em medidas de repressão.

Nesse sentido, é interessante a entrevista de Eddie Hendrickx, ex-vice-diretor da Polícia Nacional belga e responsável pela desmilitarização da polícia em seu país nos anos 90.

Ele afirma que, na Bélgica, hoje, “há um serviço policial baseado nos princípios de policiamento comunitário, o que significa que a polícia funciona como um órgão de prestação de serviço para cada cidadão e não mais como um instrumento de força para o governo local ou nacional”.

Para ele, “policiamento comunitário é essencialmente isso – juntar polícia e cidadãos, sociedade civil e autoridades políticas, para discutir quais são os problemas de segurança e conjuntamente achar soluções. (…) Para as pessoas se sentirem mais seguras, é preciso identificar os problemas de segurança reais no nível mais elementar e então buscar soluções.

O belga ainda lembra de sua experiência no Congo, onde auxiliou o governo do país na reestruturação de suas polícias. No país africano, ele lembra que “o primeiro problema na segurança identificado pela população é iluminação pública, que é uma questão que a polícia não pode resolver. Veja, mesmo na RDC, um país que passou por um conflito sangrento, a principal demanda da população, na ponta, é iluminação”.

O mesmo exemplo civil belga seguem outros países, como a Alemanha, onde opolicial é formado em matérias de direito, criminologia, psicologia, ciências sociais, ética e línguas estrangeiras, sem abrir mão de treinamentos de defesa pessoal ou tiro.

Há, ainda, países como a França, onde adota-se um modelo duplo, com uma Polícia Nacional de caráter civil atuando nos grandes centros, onde há maior concentração de pessoas, enquanto a Gendarmerie militarizada fica restrita à zona rural e a pequenas cidades. Nos EUA, a polícia com funções típicas é de caráter civil, enquanto a Guarda Nacional, militarizada, é usada apenas em interesses de defesa nacional ou em grandes desastres.

Os mais incrédulos com o sistema de policiamento comunitário poderiam dizer que nesses países há uma situação completamente diferente, já que eles são desenvolvidos. Porém, essa afirmação apenas comprova que a criminalidade e a violência são frutos de causas sociais mais complexas que não podem ser resolvidas através da repressão policial.


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A desigualdade social e a falta de apoio público criaram uma multidão de jovens sem oportunidades de melhorar de vida, o que contribui muito para o aumento da criminalidade. Basta ver como a crise de desemprego fez explodir a sensação de insegurança no Rio de Janeiro atual.

Além disso, nossa política de encarceramento em massa jogou jovens pobres, na maioria das vezes por crimes não violentos, em cadeias superlotadas que, desde os anos 90, intensificaram a organização das facções criminosas, facilitando o seu trabalho de “recrutamento”. As mesmas facções que viram seu poder financeiro crescer através de uma política de criminalização de drogas que gera lucros enormes, não só para elas, mas para uma elite criminosa que se alojou em nossa máquina pública.

O fato de termos um policiamento que adota táticas militares foi apenas a fagulha que faltava para esse barril de pólvora explodir.
Afinal, como disse o ex-vice-diretor da Polícia belga, “a força policial deve ter como objetivo a não escalada de violência, e não, de partida, já pensar em utilizar todo o equipamento que foi colocado a sua disposição. Se a polícia contribui para a escalada, o problema só cresce”. Uma versão que, com certeza, contrasta com a atuação da polícia militarizada brasileira e com as cenas de uma guerra que vitimiza, quase sempre, pessoas pobres, negras e moradoras da periferia.

Mas não só entre coletivos de comunidades periféricas a bandeira da desmilitarização tem sido levantada. Até entre os próprios policiais a ideia tem ganhado força.

Primeiro porque também há um grande número de policiais morrendo em suas atividades. Segundo porque os membros da PM estão submetidos a uma série de regimentos militares extremamente rígidos que reduzem seus “direitos trabalhistas” e a uma Justiça Militar altamente seletiva, que pune com grande rigor atos de insubordinação dos praças (baixo escalão), ao mesmo tempo que faz vistas grossas aos atos ilícitos dos oficiais (alto escalão).

Cumpre ressaltar que o mesmo rigor não é visto quando tal Justiça julga casos de abuso de poder ou de violência. Além disso, há que se contestar o custo-benefício de ainda termos uma Corte Militar tão cara como a nossa.

Talvez por tais motivos mais de 77% dos policiais do país sejam, também, a favor da desmilitarização.
E, no Brasil, o que temos de mais concreto a respeito desse tema, atualmente, é a Proposta de Emenda à Constituição nº 51 de 2013. A PEC-51/2013 traz mudanças em nosso Texto Constitucional para fazer uma grande reforma de nosso sistema de segurança pública pautada, principalmente, na desmilitarização e na construção do conceito de policiamento comunitário.

A PEC ainda traz importantes mudanças nas polícias, como a implantação do ciclo completo e da carreira única.

Hoje, nossa polícia estadual funciona com ciclo fracionado, já que a polícia civil tem a atribuição de polícia judiciária e investigação, enquanto cabe à polícia militar o policiamento ostensivo e a manutenção da ordem. O ciclo completo significa que cada uma das polícias do país poderia exercer a atividade policial inteira, desde o policiamento ostensivo até a investigação e a persecução penal. Isso acabaria com os problemas de rivalidade e falta de comunicação entre polícias e tornaria a gestão de segurança pública mais eficiente.

Já a carreira única trata de outra divisão. Atualmente, tanto nas polícias civis quanto nas militares há uma divisão interna entre seus membros. Militares dividem-se entre oficiais e praças, enquanto civis fracionam-se em delegados e agentes, sendo que os de posições mais baixas só poderiam ocupar o alto escalão através de concursos externos.

Isso cria uma situação de subvalorização dos subalternos, já que não importa o quanto trabalhem bem, sua promoção sempre estará limitada dentro da corporação.
A PEC ainda criaria, enfim, uma diretriz nacional para o sistema de segurança pública do país, além de trazer mais poder aos Municípios, algo que é uma tendência mundial não só na gestão da segurança, mas em várias outras áreas estatais. Por fim, a proposta ainda obriga a criação de ouvidorias externas e independentes que garantiriam o controle popular sobre as novas polícias.

Enfim, pode-se notar que a proposta de desmilitarização das polícias brasileiras não se trata de uma experiência aventureira ou sem precedentes. Trata-se, pelo contrário, de adequar as instituições policiais às atividades que lhes foram atribuídas, assim como já ocorreu em países desenvolvidos que conseguiram, com sucesso, combater as causas da criminalidade sem sacrificar os direitos de sua população.

É claro que, na situação brasileira, a medida não poderia vir desacompanhada. É preciso, urgentemente, que o país reveja sua política de guerra às drogas e de encarceramento em massa, já que essas medidas têm grande responsabilidade na escalada de violência que presenciamos na atualidade.

Mas, mais importante que isso, é essencial que o país caminhe para uma política econômica que preze pelo desenvolvimento com distribuição de renda, acabando de vez com esse sistema que marginaliza seus próprios cidadãos. Afinal, não há melhor política de combate ao crime do que a redução das desigualdades sociais.

Almir Felitte é Graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

As fontes e a ideia central do texto foram retiradas do seguinte artigo: FELITTE, Almir Valente. Desmilitarização das polícias: considerações sobre a PEC-51 e a reforma do sistema de segurança pública brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 130. ano 25. p. 23-45. São Paulo: Ed. RT, abr. 2017.

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