AS GRANDES CONVERSÕES LITERÁRIAS
Repetidas vezes ouvimos falar de grandes poetas e pensadores ateus. Alguns, do porte de Guerra Junqueiro, Nietzsche e, Bocage dentre outros que acabaram mesmo por se tornarem, publicamente, inimigos da igreja. Vi sacerdote jogando fora, por exemplo, obras completas de Guerra Junqueiro. Quando lemos citações fragmentadas até podemos pensar que tais repulsas são reais, mas se analisadas dentro de certos contextos as rejeições se nos apresentam como cômicas. Nietzsche por exemplo, trata os deuses gregos e romanos como deuses conhecidos. (todos tem imagens conhecidas) Já o Deus cristão é tratado como Deus desconhecido. Eis os deuses que ele anuncia que estão mortos. Aqueles vendidos e explorados pelas igrejas e seitas, etc.
Eis o belo poema que ele deixa para a posteridade:
Oração ao Deus desconhecido
Antes de prosseguir no meu caminho
E lançar o meu olhar para frente
Uma vez mais elevo, só, minhas mãos a Ti,
Na direção de quem eu fujo.
A Ti, das profundezas do meu coração,
Tenho dedicado altares festivos,
Para que em cada momento
Tua voz me possa chamar.
Sobre esses altares está gravada em fogo
Esta palavra: “ao Deus desconhecido”
Eu sou teu, embora até o presente
Me tenha associado aos sacrílegos.
Eu sou teu, não obstante os laços
Me puxarem para o abismo.
Mesmo querendo fugir
Sinto-me forçado a servi-Te.
Eu quero Te conhecer, ó Desconhecido!
Tu que que me penetras a alma
E qual turbilhão invades minha vida.
Tu, o Incompreensível, meu Semelhante.
Quero Te conhecer e a Ti servir.
Friedrich Nietzsche (1844-1900) em Lyrisches und Spruchhaftes (1858-1888). O texto em alemão pode ser encontrado em Die schönsten Gedichte von Friederich Nietzsche, Diogenes Taschenbuch, Zürich 2000, 11-12 ou em F.Nietzsche, Gedichte, Diogenes Verlag, Zurich 1994.
Já o poeta português, Manoel Maria Barbosa Du Bocage, ficou muito conhecido por seus textos e poemas satíricos, irônicos e, até pornográficos para o seu tempo, se bem que muitos dos textos e anedotas a ele atribuídas, verdadeiramente não são de sua autoria pois até os poemas e sonetos pornográficos dele, eram obras primas em rimas e métrica. Quem vai a Portugal e tem a chance de passar na cidade de Setúbal, onde ele nasceu, e ,se depara com o belíssimo monumento publico á ele dedicado, tem a certeza da grandeza de tal poeta.
Eis abaixo o seu soneto tido como sua grande conversão.
Já Bocage não sou!… À cova escura
Já Bocage não sou!… À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento…
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!… Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!
Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui… A santidade
Manchei!… Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!
(Manuel Maria de Barbosa l’Hedois du Bocage (Setúbal, 15 de Setembro de 1765 – Lisboa, …. Obras de Bocage: Estudo introdutório: Bocage sua vida e época literária. Porto, Lello & irmão, 1968. CASTILHO, José Feliciano de. Manoel Maria … )
O poeta Medeiros e Albuquerque também é tido como ateu pela igreja.
Mora em Poços de Caldas um de seus netos, Flávio Medeiros de Albuquerque que acabou por guardar livros e papéis em memória do grande poeta. No meio de tais guardados encontramos datilografado um soneto chamado Oração. Uma obra prima de Medeiros e Albuquerque. Imediatamente, o enviamos para a Academia Brasileira de Letras da qual ele foi um dos fundadores. Também fizemos na época a publicação pela internet, na tentativa de que tal soneto não se perca o que, lamentavelmente, já acontece com a memória do neto nas alamedas dos seus mais de 90 anos. Ei-lô.
Oração
Eu sei, Senhor, que não mereço nada
mas ponho em tuas mãos humildemente
meu coração que sofre. E, resignada,
minh’alma guarda, confiante e crente.
Quando eu chegar ao termo da jornada
em que a Morte, emboscada, espera a gente,
tem pena de minh’alma amargurada,
vê que eu também sou filho – e sê clemente.
Perdoa-me, meu Deus, se eu sou culpado,
se tanto crime fiz, tanto pecado,
que hoje choro contrito, – e dá, Senhor,
que no coro glorioso, que te exalta,
no céu profundo, não se sinta a falta
de minha voz cantando o teu louvor.
(José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque (Recife, 4 de setembro de 1867 — Rio de Janeiro, 9 de junho de 1934) foi um funcionário público, jornalista, professor, político, contista, poeta, orador, romancista, teatrólogo, ensaísta e memorialista brasileiro. Filho de José Joaquim de Campos de Medeiros e Albuquerque.)