Cronica: O estetoscópio e as estreias insperadas
Era sábado e no domingo aconteceria a volta ao Cristo. A tarde estava convidativa e resolvi fazer um passeio com uma amiga até o alto da serra. Andamos até a rampa de paraglayder, encontramos amigos, Olhamos o trajeto, tudo normal, apenas um passeio pela estrada que corta a plantação de eucalipto e pinheiros. Retornamos no final da tarde, de bondinho, tudo dentro da normalidade.
Já no domingo acordei com febre bem alta. Recorri a Dipirona monosódica mas bastava passar o efeito do medicamento e a estranha febre estava de volta.
Como já sou meio indígena por frequentar a comunidade Xucuru Cariri, de Caldas por bastante tempo, recorri ao celular da nossa pajé. Lá é uma pajé mesmo.
Ela atendeu de primeira ordem, afinal, quando se recorre ao pajé é porque se trata de assunto sério segundo dizia Stanislaw Ponte Preta.
_ Irmão índio negro está queimando de febre o que a senhora me aconselha?
_ Tem que passar água de lua.
Esperei a noitinha chegar, fui para perto da manta e notei que a lua refletia em um laguinho. Peguei um tanto d’água e me banhei. A febre não passou. Liguei novamente:
Pajé a febre está mais forte.
_Banhe agora com folha de árvore que passarinho azul pousou.
Voltei para a mata com uma lanterna e achei uma árvore cheia de pássaros azuis, acho que se chamam Azulões..
Peguei as folhas e me banhei, mas, nada da febre baixar. Voltei mais uma vez para o celular da pajé:
Pajé, irmão índio está com tanta febre que segura um ovo na mão e já sai cozido.
Pajé coçou a cabeça, deu uma baforada no cachimbo, dançou um pouquinho e disse:
_ Então o jeito é procurar médico de homem branco.
Logo cedo duas amigas correram comigo para a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) em busca de socorro.
Depois de listar o computador a atendente estranhou por não encontrar meu nome.
Não se assuste, mas é a primeira vez que venho para usar a Unidade. Não que na minha idade eu nunca tenha precisado de medicamento, mas sempre pensei: Se eu puder pagar deixo o lugar para quem precisa mais do que eu.
Passei rapidamente pelo controle de pressão e mais rápido ainda para o médico.
_Tem diabete? Não. Tem alergia? Não. Tem rejeição para algum tipo de medicamento?
Dr. Sou completamente pobre. Não tenho nada do que o senhor me pergunta. E a febre continua.
Remédio para controlar a febre, radiografia de frente, de costas, de ponta cabeça e mede pressão, e tira sangue, e faz xixi no vidrinho, e manda soro com algum medicamento. Nada no sangue. Nada na urina nem na radiografia. Estabilizada a febre volto para casa. Terça-feira começa tudo de novo. Volto para a UPA. Todos os procedimentos refeitos e nenhuma novidade.
Na quarta-feira caminhei pelas ruas como um bêbado e a tal da febre está de volta e tão agressiva que todo o corpo tremia exageradamente. Assustados os amigos chamaram o SAMÚ que chegou rapidamente. Caminhei até a viatura, me sentei recebi medicamentos e fomos para a UPA. Passei o dia sendo monitorado, outros médicos e médicas entraram no processo até que no final da tarde veio a decisão:
Eu Deveria ficar Internado. Pedi um intervalo, retornei a lanhouse, deixei ordem de pagamentos para os dias seguintes. Passei em casa para pegar roupas e coisas de higiene pessoal e volto para a Unidade de Pronto Atendimento. Eu que já havia estreado o SAMÚ, inaugurado a UPA, perdido a virgindade de radiografia, soro, etc., ia experimentar a internação e tudo mais. Novos exames, novas possibilidades e mais uma noite e um dia se passaram. Sempre lúcido eu estava com febre, mas feliz não só com o atendimento que recebi, mas também a forma que as demais pessoas a minha volta foram atendidas. Claro que vi procedimentos que podem ser mais dinâmicos para o bem do setor. Termina o plantão de um médico, outro assume, repete a entrevista. Terceiro médico, a mesma entrevista quando tudo já poderia estar no histórico do primeiro médico. Ao invés do paciente, já debilitado ficar andando com papéis de um lado para outro, o relatório e os procedimentos anteriores já poderiam estar no sistema e os médicos teriam um terminal de computador nos consultórios, etc. Enfim, coisas menores, mas que melhorariam o dinamismo e a qualidade do atendimento, e pouparia tempo de todo mundo. Já que o contato humano é excelente.
Quanto a mim, surge até uma corrente nas redes sociais, orações, vibrações e finalmente, uma vaga na Santa Casa. Há um limite de tempo para internação na UPA. La vamos nós passear de ambulância até a Praça Francisco Escobar. Enquanto o leito não vaga paro no ambulatório com várias pessoas e casos diferentes. Fico sempre atendo com a qualidade do atendimento que todos receberam também na Santa Casa. Até uma universitária com dor de dente e que precisava e tratamento de canal foi socorrida. Sozinha, quase dez da noite e necessitando mesmo de procedimento odontológico. Logo a médica arrumou uma saída: Vou ministrar um medicamento que vai tirar a dor, mas você ficará meio zonza e não poderá caminhar pela rua sozinha. Então você vai dormir aqui e amanhã procurar um dentista para fazer o tratamento de canal.
De volta ao meu caso da febre teimosa, vou para a emergência onde passo a noite sendo monitorado. Começam as investigações.
Andou na mata? Pode ser Dengue, mas faltam mais sintomas. Pode ser febre amarela que está na moda. Pode ser HIV, (a última hipótese eu mesmo eliminei de primeira). Só quando ainda adolescente levei sustos com a possibilidade de namoradas gravidas e nunca mais deixei o preservativo que só entrou na moda com o aparecimento da AIDS. Nunca fiz transfusão de sangue, nem relação sexual diferente. Enfim meu risco HIV é praticamente, nulo. Pode ser um universo de doenças que começam com febre alta.
E tira sangue e bota soro é agulha que sai agulha que fura até que não havia mais veia para furar. Ganhei finalmente um intracard com comunicação direta com a corrente sanguínea sem precisar mais furos.
Sem espelho no banheiro, dois ou três dias de barba por fazer, sem escovar os dentes tudo por falta de um espelhinho. Veio um momento de lucidez. Porque preciso de espelho para escovar os dentes? E não é que nos condicionamos em fazê-lo diante do espelho? Depois fiz a barba sem espelho mesmo. Só usando o tato. Mesmo que estiver meio mal feita não importa. Não vou para a TV hoje mesmo…
A possibilidade de estar com febre amarela cresce. Deixo o quarto de emergência e vou para o isolamento juntamente com mais um suspeito da febre. Já tinha alguém para conversar, e trocar ideias. Tinha televisão que só pegava a Globo. Dava até para seguir as novelas. As historias eram sempre as mesmas. Alguém que trocou o filho na maternidade. Alguém que teria morrido, mas voltava como se fosse outra pessoa. Alguém que traiu não sei com quem. Etc. Quanta falta de criatividade. Existem tantos textos clássicos e imortais que dariam belíssimas novelas e minisséries e ajudariam a melhorar a nossa falta de cultura. Será que precisaremos de uma lei de cotas para que as emissoras descubram que deveriam tem compromisso com a formação do nosso povo?
Até me esqueci da minha febre.
Logo que informei ser ovo-lacto vegetariano o pessoal da cozinha passou a mandar minha refeição compatível. Uma ou duas vezes por dia recebíamos visita e um auditor do SUS. Sou Francisco de Tal, auditor do Sistema Único de Saúde e queria saber se os Senhores teriam alguma reclamação com reclamação ao atendimento. (nunca vi tal procedimento nem em planos privados de saúde)
Minhas estreias continuaram. Um dos médicos mandou que eu tomasse um liquido especial para se fazer a tomografia computadorizada. Só que era um volume que nunca eu havia tomado. Pouco mais de um litro d’água e uma ordem severa; não urine antes da tomografia. Porem, no sexto copo em já estava explodindo e ainda tomei mais um. Não demorou para que a “torneira” começasse a vazar. Segurei na ponta e pedi socorro. Levaram-me correndo para o setor e a tomografia foi realizada, mas não revelou nenhuma novidade.
De volta para o quarto, recebemos uma notícia de que o rapaz com suspeita de febre amarela havia falecido. Só que ele estava na cama ao lado mais vivo do que nunca.
Pensei, já que não tenho nada é possível me eu morra com febre, mas com muita saúde. Para não dar trabalho posterior comecei a pensar no que escrever no meu túmulo. Revirando os poemas e sonetos que trago na memória achei um, praticamente, pronto. Bastava trocar o nome do personagem. Até na métrica dava certo. Peguei a caneta ao lado e caprichei:
Tereziano frívolo e peralta/era um paspalhão esse fedelho/tipo incapaz de ouvir um bom conselho/ Tipo que morto não fará falta. Mas meu exercício de plagiar a epígrafe foi interrompido pela presença de um jovem médico e seu estetoscópio, Dr. Matheus.
Com o equipamento no ouvido ele ordenava; respire, aspire. Ouviu o peito… as costas.. e se deteve repentinamente em um dos pulmões… respire…aspire… respire… aspire…. epa! Parece que escutou um ruído importante. Chamou outros médicos que nada ouviram, mas ele, com a acuidade auditiva mais aguçada teve a certeza do ruído pulmonar. Eu estava com o início de uma pneumonia completamente assintomática.
Nada de dor, tosse, pigarro ou qualquer outro sintoma, além da febre. Rapidamente veio a certeza do problema. Um potente antibiótico foi introduzido juntamente com o soro e ele já anunciou que eu teria alta no dia seguinte com o compromisso de dar sequencia ao tratamento em casa. Comprei imediatamente o remédio indicado, passei a ter mais cuidado com alimentação, pois perdi alguns quilos, mas já estou com vida, praticamente normal, voltei ao trabalho e a cada dia venho me sentindo mais seguro.
Pensei comigo na aventura vivida em poucos dias. Quantas estreias chegaram juntas. SAMÚ, UPA, radiografias, soro, internação, tomografia e pneumonia. Só faltaram CTI e Centro Cirúrgico. Porem ia me esquecendo, dos três quilos que perdi em poucos dias, agora com alimentação em horário certo, frutas e vitaminas e muito cuidado, já recuperei 15 gramas. Isto mesmo… 15 gramas em dez dias. Mas em função dos litros de soro fisiológico aplicado, ganhei também um farto e incomodo barrigão como nunca tive.
Fiquei meio assustado com o volume do abdome. Maternidade… Nem pensar chega de estreias.
Ps. O amigo de isolamento com suspeita de febre amarela já teve alta e retornou ao seu trabalho.
Roberto Tereziano