Lembranças Eternas
Roberto Tereziano
Era um dia comum, tranqüilo como os demais de uma cidadezinha interiorana.
Não fosse a campainha o telefone com aquele inesperado interurbano seria apenas mais um dia comum.
Do outro lado da linha o interlocutor com o qual não falava a mais de meio século me trazia noticias dela. Aliás, já se fazia mais de 50 anos que não a via.
-Venha se puder. Ela gostaria de revê-lo caso possa vir até aqui. O tom dominante do interlocutor não m permitiu dizer não.
Já na estrada a paisagem veloz pela janela do carro e o pensamento retroativo traziam para mim um filme a muito esquecido que começara a mais de 60 anos.
Eu era ainda um jovem pouco mais que adolescente, terminando da faculdade quando ela apareceu. Bela, meiga e doce, não foi preciso muito tempo para me encantar. A vida se inflamava, cheia de sonhos de uma juventude sonhadora. Com tendência a ser poeta foi num longo poema datilografado ofereci do a ela que contei em síntese toda a minha vida até conhecê-la. Passeios, planos e doce casamento que não tardou a se concretizar.
Uma grande família também estava nos nossos sonhos e planos, mas o sonhado filho não se manifestava. Começa a maratona entre um médico e outro num período em que o conhecimento de tal setor da medicina se baseava mais no empirismo que na ciência, e o castelo de sonhos do jovem casal começam a ruir.
Sem um definitivo laudo médico as acusações se confrontam querendo ambos se eximir da culpa pelo infortúnio da não gravidez. Não levou muito tempo para que o casamento se tornasse apenas uma pensão mensal que eu mantive e o banco se encarregou de transferir por mais de seis décadas.
Cada um para o seu lado e os anos se passaram até que a medicina avançara e num certo dia ela mesma em um telefonema se desculpa assumindo ser a responsável por não engravidar, pois os médicos finalmente encontraram uma falha genética que a impossibilitava de ter filhos.
Tal notícia não me teria pego desavisado, pois já vivia um outro casamento há vários anos e os alegres filhos já nos sorriam diariamente.
Todos aqueles momentos de vida povoaram o caminho e quase não notei que o tempo se passara e lá estava eu adentrando a casa da família da moça que um dia alimentou meus sonhos que não se realizaram.
O que poderia querer de mim aquela mulher mais de 60 anos depois?
Amavelmente recebido pelos demais familiares fui conduzido à beira de um leito onde enferma definhava aquela mulher com seus longínquos traços de beleza que um dia amei.
O doce olhar de outrora não sei se ainda existia, pois os olhos, praticamente, não se abriam. Porem, os ouvidos ainda estavam ávidos e em alguns segundos minha voz fora reconhecida. Sua mão tremula tateava buscando a certeza de que não se tratava de um sonho. É Você Flávio! Sim, eu estava ali presente tantas décadas depois.
A mesma mão tremula buscou por debaixo do colchão e, me entregara um folha de papel já esmaecida pelo tempo e, com marcas de algo muitas vezes manuseado, lido e relido. Era uma parte de minha vida que eu mesmo escrevera quando ainda era apenas um jovem apaixonado, poeta sonhador, contando a ela tudo que eu vivera até conhecê-la.
Afastei-me sutilmente e no banheiro não pude evitar as lágrimas que tentava conter ao deparar com tanto passado em tão pouco tempo.
Seria melhor que eu não tivesse retornado e nem revivido tudo aquilo que já estava se apagando nas gavetas do esquecimento? Porque aquele papel amarelado teria sido guardado por tantas décadas? Porque a vida teria nos preparados tamanho desencontro?
Já na rodovia de volta para minha cidade, tais pensamentos povoavam todo o caminho. Muitas perguntas, poucas respostas…
São os caminhos da vida que só ela mesma poderá, talvez, entender e explicar.
Retornei enfim a minha casa onde a vida me sorria com uma amável companheira e onde eu pude finalmente construir num lar de amor e compreensão a tão sonhada família.
Porém era impossível não relembrar toda a vida passada.
Dois dias se passaram e um novo telefonema me informavam que aquele pouco de vida que ainda encontrei no leito dias antes havia se expirado.
Agora, com toda a minha família, novamente na estrada retornei para o féretro.
Ao chegar, fui novamente recebido por prolongados abraços, e, quatro cadeiras vazias ao lado de uma urna mortuária nos aguardavam. Duas, para mim e minha atual esposa, e outras para os filhos que só vieram do segundo casamento.
Agora, no bolso uma folha envelhecida datilografada que ficou guardada por mais de 60 anos. E um rosário de indagações sem respostas que talvez um dia o tempo me ensine a esquecer..
Talvez um grande e eterno amor que a vida escreveu por caminhos inexplicáveis.