Ruínas e Reminiscências do Tempo
Roberto Tereziano
Era um evento em comemoração ao dia do bombeiro e por um modesto envolvimento que tínhamos com a atividade de combate a sinistros antes da corporação e também nos primeiros anos dela instalada em Poços de Caldas, fomos um dos homenageados. Uma espécie de Amigo dos bombeiros, ou Bombeiro amigo como eles diziam.
Como o evento era bastante concorrido não foi fácil estacionar próximo ao batalhão. Depois de várias voltas conseguimos uma vaga em uma ruazinha em frente, próximo do lugar onde morava a família De Parólis. Corremos para a festa que não tardaria a começar e só depois, na volta ao carro, nos foi possível olhar atentamente para os imóveis antigos e novos e reviver uma espécie de volta ao passado.
A propriedade do sr. Badíde Parólis, era uma pequena chácara que se divisava a um pequeno lote, e entre ruinas e tufos de matos e ervas e até flores simples se ostentava e resistia ao tempo apenas a base do casebre, que me remeteu às lembranças de mais de sessenta anos passados.
Ali era uma rua sem calçamento que começava na Rua São José e terminava numa viela, margeada por um pequeno córrego tão límpido que seria possível tomar de suas águas.
Havia uma cerca de arame na frente da casinha caiada de branco, tendo ao lado e ao fundo, quase uma cerca viva com arbustos que mais se pareciam com pés de marmelos, e um corredor rústico calçado com pedras de mão. Por ele se acessava a casa da Vó Brasilina, nome bem propício para uma mulher brasileira, vem de Pau Brasil.
Eram três modestos cômodos de uma chamada “meia água” com pouco mais que dois metros de altura, e piso de chão batido, uma única e lúgubre lâmpada no meio de um dos cômodos, quase uma lamparina, sem laje ou forro e cobertos com as chamadas telhas romanas, mas que no Brasil bem que deveriam ser chamadas de telhas de coxas, pois eram moldadas nas pernas dos escravos ceramistas.
Naquele casebre, hoje em ruínas, moravam a Vó Brasilina e seus filhos. Lembro-me do Fidico, (Frederico) Cida, (Aparecida) e da Tózinha (Augusta.) Um de nome Jonas. Parece-me que havia outro filho de nome Benedito, que há muito tempo desaparecera. Saiu para trabalhar e nunca mais foi visto. Todos eram muito amigos da minha família e tratados como parentes.
Vó Brasilina era uma senhora negra, de pequena estatura e já com bastante idade quando eu era criança. Possivelmente, ainda nascida no tempo da escravidão. De poucas palavras, mas sempre carinhosa, quase sempre, acocorada num canto da cozinha com seu cachimbinho de barro, uma verdadeira figura das ”Mães Pretas” do tempo do cativeiro. Não era parente de verdade, mas era comum naquele tempo que nós crianças, tratássemos as pessoas mais idosas como tal. Possivelmente ela já era viúva. Tanto ela como os filhos e filhas participaram das antigas festas e congados de São Benedito.
Não sei bem como tal amizade entre nossas famílias começou, mas como eu nasci naquelas imediações talvez possa estar aí a ligação. As famílias foram vizinhas. Tive mesmo como madrinha, uma de suas filhas. Era lá naquele lar encantado que eu passava muitos dos meus finais de semana pescando lambaris-prata com uma peneira de taquara, no límpido riacho.
Mesmo numa cidade pequena, mudanças de um bairro para outro, como é comum em famílias pobres, interrompem ou pausam grandes amizades que permanecem apenas na memória.
Dezenas de anos se passaram e não mais tive contato ou noticias da Vó Brasiliana ou daquelas pessoas amigas.
Foi naquela ida ao quartel dos bombeiros que uma antiga e adormecida chama de lembranças se acendeu. Olhando com saudades para aquelas ruinas do imóvel, cheias de matos e restos de plantas, pensei que ali já existira vida, amor e amizade. Não era uma simples e centenária ruína abandonada.
Lembrei-me do pensador italiano Norberto Bobbio “São nas rachaduras, trincas e esfoladelas que a história se escreve.”