TREM LUDGERO BORGES (FINAL)
Fornecíamos marmitas -naquele tempo era comum o caldeirãozinho – sendo quase exclusivamente para o pessoal da CM, que acertavam as contas impecavelmente no dia em que chegava o pagamento por um Trem especial que percorria ramais com o carro-tesouro, cuja metade do vagão era empório de utilidades reservado aos funcionários da CM . lá estava eu no pátio de manobras para entregar o mata-fome para o foguista que com o ‘seo’ Manoel, acomodavam uns vagões com animais vivos e outros de cargas variadas, esperando a máquina aproximar-se da chave. Em pé, próximo as trilhos, ergui o caldeirão para que o foguista o pegasse de passagem e ele abandonando por uns segundos seu posto de maquinista, acocorou –se no piso da locomotiva apoiando-se num pega -mão estendendo o outro braço para baixo afim de enganchar a alça do caldeirão do grude , enquanto a fogosa aumentava gradativamente de velocidade. O chofer acertou em cheio a pegada mas desequilibrou-se e pendeu o corpo para fora. Se tivesse largado a bóia e agarrado o balaústre ficaria tudo bem, mas cismou que o mata fome era mais importante e para não cair de bruços, saltou para o chão, o que não foi sua melhor ideia, pois correu uns 3 ou 4 passos para completar numa bela deslizada de barriga, mas não largou o mata fome ! Cara teimoso siô ! Quando segura uma coisa, não larga mesmo. Por uma fração de segundo, inexplicável, ocorreu-me duas opções ! Acudir o homem estatelado no chão ou acudir a máquina. Então deve ter se sobreposto no cérebro, aquele fenômenos mental do subconsciente que decide mais rápido; o instinto ou o raciocínio ? Valeu o instinto vital . Muito antes do tempo correr naquela fração de minuto, já me pus a correr pelos dormentes na ânsia de alcançar aquele bagual de ferro que passava agora sobre o curto viaduto, no intento de agarrar o engate de aço por onde eu talvez pudesse me dependurar e subir por ele e correntes de ferro, a engatinhar sobre a lenha do tender caindo na zona do maquinista. Ainda guiado pelo instinto de sobrevivência saltei dos dormentes para o chão na beira-linha para ser mais veloz na ânsia de me atracar nos pedais da entrada da máquina que estava quase no nível da mão. Não tirei os olhos dele e por isso nem vi que atravessávamos a passagem de nível com a rua que ia para o britador da Cia. Geral de Minas. Em plena exaustão, com a língua rocha e meio enrolada para fora da boca consegui sentir o frio do ferro do estribo da locomotiva e me atraquei nele com uns dedos e em seguida com a outra mão, na certeza que ia desmaiar de cansaço se corresse mais 10 metros. Não vi no quê mais me agarrei, mas já com um joelho no piso interno, fiz gigantesco esforço e me joguei no chão da máquina. Recuperei imediato a consciência, me ajoelhei, e agarrando em coisas, consegui chegar na posição de comando, voei para a alavanca de comando que estava a uns 45 graus, com hercúleo esforço destravei-a e arrastei sua ponta para a posição ponto morto -90 graus na vertical- e recorri ao breque. A máquina deu um longo suspiro de alivio esguichando um enorme jato de vapor que pode ter se acumulado em algum lugar, certamente por alguma barbeiragem que fiz sem querer naquela confusão mental que esquentava minha cachola. Uma válvula de escape de emergência talvez. Eu estava zonzo ainda e o meu filme desenrolou uma tantada de metros então revi os últimos acontecidos e, curioso, lembrei-me no que tinha pensado quando o foguista focinhou no chão e o que disparara meu ímpeto de parar a locomotiva; tinha me alertado de que se a locomotiva desembestasse , linha à fora, poderia causar danos pra daná. Não lembrava de outros motivos. Ainda meio grogue espiei para todos os lados e vi que vinham três pessoas trotando ao nosso encontro, -meu e da máquina -. Subiram, atônitos e com os olhos interrogativos quão surpresos me faziam perguntas e mais perguntas, só faltando me darem uns tapinhas no rosto para acabar de acordar. Quando dei por mim, sorri e eles a princípio imitaram, e depois um riu mais alto o que foi imitado pelos outros dois , que acabei entrando no esquema e passei a rir também e dali a instantes éramos quatro de boca aberta dando rizadas pra valer, sem saber porquê e do quê Acho que descobrimos que os nossos Anjos da Guarda não estavam de folga naquelas horas. O foguista ainda resfolegando de cansado, procedeu minuciosa revista nos aparelhos e viu que tudo estava nos conformes e alertou ‘seo’ Maneco e mais um funcionário da CM que assistira o espetáculo e também correra com ele, engatou a alavanca para traz até , no máximo, juntou seus dedos trêmulos na alavanquinha de aceleração e com a outra mão desabrecou a locomotiva, que principiou a marcha ré bem de vagar. Jogando mais uns paus na fornalha, deu dois curtos apitos -sinal de tudo certo para despreocupar alguém que possivelmente também assistira o fato e voltando para nós outros falou em voz solene. -Minha gente… Deus evitou o que poderia ser uma grande desgraça como acabamos de ver. Não vamos piorar a situação pois nem o aviso de socorro foi dado -que seriam 3 apitos, sendo o último mais longo-. A gente precisa fazer o boletim de ocorrência pro pessoal d’aqui e convencer que esse assunto deve morrer aqui, senão os home -a diretoria de Campinas- vai prejudicar meio mundo. ”seo” Maneco ajuntou; -Não devemos comentar o assunto com mais ninguém, nem nas nossas casas. Inda mais que tem um estranho no meio. Vai cabê punição pra meio mundo… Cumbinado ? E ocè -dirigindo-se a mim-, vaii iscuitá a bronca do seu avô, mas num esquenta não. Nóis junto vamos falá com ele mais o chefe da Estação. Não torna n’outra heim !
Sobre assuntos ligados á estrada de ferro temos muito a contar e quem sabe ainda o faremos . Neste momento queremos pelo menos deixar registrado nosso pensamento sobre os benefícios material, cultural e porque não dizer moral e espiritual que parte do progresso humano nos legou. Nós da região Mogiana precisamos ser gratos ã Companhia de Estrada de Ferro Mogiana, assim como aos demais veículos e costumes salutares que absorveremos.