VIDAPSÍQUICA Renato Santiago Bandola – Psicólogo
OBS: Este texto contém spoilers do filme!
O filme Dogville retrata os acontecimentos em uma pequena cidade dos EUA, onde aparentemente a vida é tranquila e pacata até a chegada de uma estranha fugindo de um grupo de gângsteres chamada Grace. Em busca de um abrigo ela encontra Tomas Edison, um morador do vilarejo que nutre sonhos de lançar um livro sobre ilustrações a respeito da moral.
O filme tem o seu desenrolar em um grande palco sem paredes, somente com traços riscados no chão escrito com os nomes das casas das pessoas. O filme se passa em nove atos donde o desenrolar dramático é chocante e indigesto, porém, verdadeiro em sua nudez.
Esta nudez se revela no comportamento de uma comunidade que ao receber em seu centro Grace (graça) representando o estranho, ameaça à coesão do lugar remexendo o inconsciente e ao mesmo tempo a sombra das pessoas que depois de certo tempo começam a se aproveitar de sua culpa em estar estragando o “sossego” do lugar com a polícia a procurando sempre.
Grace é uma jovem interpretada belamente por Nicole Kidman. Esta, o tempo todo tenta através de todos os meios possíveis (desde engraxar o sapato da empregada da vila até servir de objeto sexual para todos os homens do lugar que passam a estuprá-la todas as noites), agradar as pessoas, ser cortês e mostrar uma moral imaculada, sempre no sentido de ser aceita na comunidade, que de algum modo parece nunca aceitá-la.
Alguns elementos no filme merecem destaque como o nome do único cachorro da vila, Moisés que representa justamente o que falta a vila, a figura de uma real autoridade, de um arquétipo do Grande Pai. O tempo todo tanto Moisés, quanto as paredes das casas são riscadas no chão, mas não existem denotando uma total ausência de separação entre mundo interno e externo.
Aquele que deveria ser o líder, Tom, também é carregado pela psicose de massa em que o mais importante é sempre ser igual à imagem a qual todos sempre se serviram para nomeá-lo. Este (Tom) entrega Grace aos gângsteres, demonstrando que ao final, Dogville nunca se abriu para o novo fazendo do estranho um bode expiatório para todas as culpas não assumidas pelos moradores. Tom, nunca fora fiel a sua filosofia de abertura para o outro, já que nunca acolheu este outro, nunca houvera outro.
Assim, este personagem demonstra a realidade política social de pessoas que querem se promover através da publicidade de bons atos, mas que na verdade, na intimidade é justamente o contrário, a hipocrisia social.
Assim, Moisés continua somente em sua presença fantasmática como um latido no cenário, assim como as portas e paredes mostrando que em uma sociedade em que não há diferenciação entre interno e externo, público e privado, onde todos sabem a respeito de todos não há como colocar ninguém para dentro já que não há um dentro.
Dogville é o exemplo de uma sociedade que fracassa, da ausência de um líder que por não existir é escolhido como o mais fraco, o mais manipulável, este é Tom. É muito interessante o desenrolar da história que mostra o gângster chefe como o pai da protagonista Grace. Ele quer apenas conversar com ela, apenas mostrar a mesma, sua arrogância em não reconhecer que as pessoas precisam de uma oportunidade para confrontar seus erros e isso só é possível através de outro que demonstra esses erros, não precisando ser aceito pelas pessoas.
Mas Grace demora a conseguir digerir as palavras do pai, tanto quanto Dogville, Grace só legitimou a lógica hipócrita daquele lugar, seu desapego abnegado, seu sacrifício e seu perdão na verdade só perpetuou a mesma lógica, era um combustível para a psicose coletiva de objetificação perversa do outro.
A esperança de Grace em ser aceita representada pelas luzes do cenário se transforma, para ela, em pura ingenuidade quando a mesma aceita o conselho de seu pai de que não é errado se abnegar ou ser bom, contanto que seja nos momentos certos. Assim, a figura do Grande Pai para Grace consegue ascender à consciência, mas em um processo compensatório, o encontro com o animus paterno de Grace a possui retirando sua capacidade de decisão e reflexão, ela consegue diferenciar sua personalidade aceitando sua origem como filha de um homem poderoso, mas ainda não consegue se livrar da arrogância. Antes era a abnegada, solícita e bondosa, depois passa a ser terrível e cheia de poder a ponto de eliminar perversamente a todos.
Ainda assim, há muita divergência com relação à Grace, ela consegue integrar sua sombra (arrogância) matando todos na vila e extirpando-a do mapa? Ou esse movimento é nada mais do que um processo coletivo de enantiodromia*, onde esta fora dominada pelo arquétipo sombrio do pai que era ausente naquela sociedade? Dá o que pensar!
De qualquer forma o que o filme nos dá a entender é que Dogville na realidade representa um lugar simbólico que diz sobre uma dialética entre os opostos psicológicos. Na medida em que Grace é tratada como um animal, um cão pelos moradores da vila, este cão devora a própria vila em sua fúria invisível (inconsciente). A domesticação que a vila exerce sobre Grace retira sua dignidade humana, mas revela o lado selvagem da vila.
“Quando o coletivo é considerado como um reservatório de possibilidades psíquicas, é uma força gigantesca capaz de fomentar delírios grandiosos e psicoses de massa. O oposto da individualidade era considerado por Jung uma identificação com o ideal coletivo, levando à inflação e, no extremo, à megalomania. Ele acreditava que o efetuador real de mudanças era o indivíduo, uma vez que a massa como um todo é incapaz de consciência” (SAMUELS, SHORTER & PLAUT, 1988).
Assim, não reconhecer o seu animus paterno fez Grace se situar em um estado de ingenuidade moral (ainda que do lado “criminoso” sendo filha de Gângster), compensando isso através de uma atitude extrema de utilização de seu poder sendo o próprio martelo de condenação da vila.
Continua