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Revisitando Um Recanto Nada Asiático

A vida é feita de momentos e de lampejos da memória que às vezes nos surpreendem. Tempos atrás fui pego de surpresa com a notícia da destruição de uma casa típica de um dos nossos logradouros por um incêndio. Na minha memória ocorreu um choque com o passado,um estado de alegria e medo, pois não era a primeira vez que vândalos cometiam tal crime.

A destruição mais recente atribuída a usuários de drogas, vítimas de outros vândalos engravatados que ocupam os gabinetes do governo e drogados pelo poder, destroem igualmente casas históricas cheias de vidas e memória, que para eles nada significam. Explico:

Havia um tempo em que não existia Avenida Dr. David Benedito Otoni, nem sequer Recanto Japonês. Havia apenas um rústico caminho para um local distante chamado Caixa D’água.
Ali, durante muitas décadas existiu um reservatório de água responsável pelo abastecimento de grande parte da cidade, com o precioso e vital liquido tão essencial.

Ao lado da Caixa D’Água existiu uma grande moradia cheia de janelas e portas, mais acima de tudo cheia de vida. Foi ali que Gijo e sua esposa, Perpétua Severino Soares construíram a cantina que tanto elevou o nome de Poços de Caldas.

Naquela casa que não se apaga da memoria, Perpétua Soares fez nascer e viu crescer seus sete filhos. Ali viveram também mais alguns agregados que de alguma forma passaram a fazer parte da família Lotti.

Havia balanço para as crianças num “play ground” natural chamado cipó de árvores, mas havia também alguns balanços feitos para os filhos de veranistas que não sabiam o sabor de se criar seus próprios brinquedos nos galhos de árvores, balançar livremente em cipós ou nadar em lagos e riachos sem os azulejos e trampolins.

Havia um exímio sanfoneiro cujo nome não mais me lembro, mas que marcava as tardes com sua gaita de oito bachas. Assim era a vida no recanto mineiro chamado “Caixa D’Agua”.
Por causa da beleza natural e da cantina ali existente, se constituia em um dos principais passeios turísticos da cidade, mesmo estando longe do centro.

Só para lembrar, certa vez apareceu por lá um italianinho recém-chegado na cidade, e que procurou logo por outros patrícios que pudessem acolhê-lo.

Não demorou muito para que Gijo e Perpétua se simpatizassem pelo visitante e o acolhessem.
Mas o visitante tinha outros sonhos e vontades. O italianinho revela para os anfitriões que sua intenção era de arrumar uma boa moça para se casar. Perpétua que ouvia a conversa intervém: tenho uma amiga com todos os pré-requisitos de uma boa esposa, bela, bem prendada, como se dizia na época, mas com um sério problema:

O italianinho, pensando logo em alguma deficiência física grave, não se recusou assim mesmo a conhecê-la.
Na verdade, o sério problema da moça era mais simples e até poderia render muito dinheiro nos dias de hoje. Alguém havia feito com que a ela tomasse uma garrafada, ou seja, um remédio caseiro, que a fez perder dezenas de quilos, em um tempo que ter um corpo aos moldes de Gisele Bündchen se constituía em defeito grave.

Perpetua apresentou a amiga ao jovem italiano e foi amor à primeira vista. Não muito tempo depois o italiano tinha mais uma revelação a fazer ao Senhore Gijo. Gostaria de se casar o mais rápido possível, mas sofria de hipossuficiência, ou seja, não tinha dinheiro suficiente para montar uma casa. Dificuldade rapidamente solucionada pelo Gijo Lotti:

Olha meu rapaz: em casarão como o meu, quartos não faltam. Você pode se casar e ficar morando aqui mesmo. Enquanto não tiver trabalho melhor pode nos ajudar no restaurante e seu problema estará resolvido. E assim se fez.

Muitas pessoas ilustres e poderosas também se apegavam ao mestre Gijo. Até o presidente da Republica Getúlio Vargas e família, sempre que estavam em Poços de Caldas, marcavam presença na caixa d’agua e se tornaram íntimos de Gijo e Perpétua.

Certa vez o presidente Getúlio Vargas ao chegar a casa soube do nascimento de mais um filho de Gijo e Perpétua e se ofereceu para batiza-lo, mas Perpétua, na sua simplicidade e sinceridade não aceitou. Disse ela: Olha Sr. Getúlio, eu já prometi a uma amiga que acaba de se casar com um italianinho que mora aqui em casa, que ela e o marido seriam os padrinhos da criança e não posso voltar atrás.


O presidente da republica porem, não se fez de rogado, passou pelo resto da vida tratando a Perpétua e Gijo como compadres.

Tanto ele não se ofendeu com a recusa que continuou atendendo o anuncio do “compadre” avisando que o almoço estava pronto. Era o mestre Gijo batendo em uma panela, chamando o presidente Getúlio Vargas e seu staff para almoçar.

Foi no recanto Caixa D’àgua que o presidente arquitetou parte importante do golpe de 1930. Seu chefe de segurança Gregorio Fortunato, fechava a unica entrada do local e as reuniões políticas aconteciam a céu aberto ou na cantina do compadre. Decisões importantes para o país foram tramadas ali.

A marca do recanto “Caixa D’Agua também se fez pela qualidade do tempero das comidas e guloseimas feitas por dona Perpétua Soares que dirigia a cozinha”.

Dentre as melhores crônicas do escritor Rubem Braga, que também frequentava o local está uma que poderia ser denominada denominada “Manjar dos Deuses” mas chama-se Almoço Mineiro. Como numa receita de bolo o grande cronista descreve minuciosamente, como Dona Perpétua preparava o verdadeiro Tutu à mineira. Nem a maneira com que ela cortava a couve passa desapercebida para o grande escritor.

Alí havia historia, havia amor, havia vida.

Certo dia os “nóas” engravatados com crachas de secretarios, inescrupulosa e irresponsavelmente pisando no passado e na história, como um incêndio sem chamas destruíram o doce “Recanto Mineiro” e o transformaram no Recanto Japonês, que nas nossas lembranças de criança, nas árvores, buracos e esfoladelas, como diria Norberto Bobbio, chama-se Caixa D’agua.


Eu já estava até me esquecendo da destruição do nosso casarão quando os chamados “vandalos ou nóas sem gravatas” ao destruir a casa do recanto japonês obrigaram-me a revisitar nos recônditos da memória o nosso recanto chamado “Caixa D’água”.

Quiçá, autoridades recuperem mesmo a casa japonesa já que ninguém lamentou ou lutou para impedir a destruição do meu recanto mineiro.
Roberto Tereziano

7 comentários sobre “Revisitando Um Recanto Nada Asiático

  • Obrigado pela viagem no tempo, que você me proporcionou!

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  • Muito obrigado Roberto Tereziano por este maravilhoso artigo com estas raras fotos!

    O recanto é um dos meus pontos turísticos favorito e espero muito que seja preservado como merece!👍

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    • Nasci na Rua Piauí nº 529, colado ao armazém de meus avós paternos Pedro e Assunta Bertozzi, onde hoje funciona um restaurante.
      Quando criança, me divertia muito na Caixa D’água e várias vezes meus pais nos levaram aos Domingos ao restaurante local para almoçarmos.
      O Tereziano tem toda a razão. Uma pena terem acabado com esse recanto tão bonito e que me traz grandes recordações.

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      • Amigo, sua Avó, Assunta Bertozzi, fez as esculturas em gesso dos artistas que decoravam a prédio do Politheama. Na Fachada existiam rostos de musicos, teatrologos e escritores ( Carlos Gomes, Sheakespiare, etc)

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    • Amigo, sua Avó, Assunta Bertozzi, fez as esculturas em gesso dos artistas que decoravam a prédio do Politheama. Na Fachada existiam rostos de musicos, teatrologos e escritores ( Carlos Gomes, Sheakespiare, etc)

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  • Brunna D Luise turato Lotti Alves

    Adorei a reportagem! Gijo era meu avô! Fiquei muito contente de conhecer a história dele! Muito obrigada!

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  • Roberto Tereziano,memória viva de Poços. – Já ouvi essa sua história e queria que todos registrassem as outras,contadas com amor e maestria que mais parecem poemas mas incrivelmente são reais. Como é bom ouvir e imaginar o pirlim-pim-pum que minha amada Poços registra em sua história. Obrigada querido Tereziano,bjo no seu coração!!!

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