O trabalho doméstico necessário e despercebido Por Ernani Pasculli Filho*
Amanheceu. O dia está ensolarado, com céu de brigadeiro, todo azul. Ventos leves e agradáveis esvoaçam as madeixas, acariciando a face. Brisas reavivam com natural sensatez a sensibilidade ocular, e penetram docilmente as narinas, aliviando discretamente as vias respiratórias.
Dias assim são peculiares a todo tipo de passeios, que nossa imaginação possa ir longe passear. Coincidência ou não, é comum em dias assim, o raiar do dia vir acompanhado num alto volume de som das músicas “xonadas”. Com a folga do labor exterior, a dona de casa tira o dia para uma limpeza geral na sua residência. Em trajes de doméstica, ela arregaça as mangas e põe as mãos na massa.
Nesse momento de intimidade com sua casa, proprietária de seu espaço, ela sabe que o trabalho é árduo, sem tempo a perder. No decorrer do dia as funções necessárias, vão se encaixando de acordo com as exigências pré-agendadas por dias. Se algum filho intromete, imediatamente uma função qualquer lhe é dada de ir ao mercado. O marido, mesmo em silêncio, mas sua presença incomoda o espaço da dona da casa, daí bruscas varridas sempre aproximam de seus pés indicando-lhe a hora para o trabalho.
Ela não quer perder o dia de sol, estendendo as roupas no varal. A hora do almoço se aproxima. Os cuidados com a cozinha, a ajuda aos filhos com as tarefas escolares, o marido chegando. Todos falam, e todos querem a atenção dela, e queixam do almoço ainda em preparo. Enquanto a sua preocupação é com a organização produtiva da praça culinária: as panelas no fogo; o uso de água quente pra outra função comestível; o lixo orgânico reaproveitável; a torneira aberta; a urgência da comida pronta acaba fazendo do todo, algum ingrediente desperdiçado.
A refeição pronta é o início para as falas. Falas da dona da casa ao pedir que se sirvam. Na sua consciência o dever do alimento está cumprido. Agora só falta a família comer pra ela desocupar e iniciar a organização da cozinha. O incômodo dos filhos e marido a que saem logo, e deixe-a sozinha na intimidade de sua casa para assídua limpeza.
Ainda que adiantados, por um lapso do tempo, o atraso acompanha imediatamente. Nesse momento o banheiro é o local mais disputado, assim ela espera a vez dela, deixando-os primeiro.
Na hora da saída para o turno vespertino, todos apressados, de hora rotineira, atrasados. Os gritos da mulher de casa não transpassam desespero, e sim, um pedido de ordem a quem tanto ama. Ela se desdobra ao tudo do bom e do melhor. Contudo, a prática urgente desvia seus ideais programados. E os filhos correspondem com risos sarcásticos, desafiando a relação de poder.
Após o almoço, inicia tarde que parece ser longa e solitária. Suas funções domésticas desempenhadas adequam ao seu controle em sua agenda mental. Sozinha novamente é possível religar o aparelho de som. Daí parte um sentimento duplo, contraditório e simultâneo: ora de alívio, ora de remorso. Todos saíram, querendo ou não, tentando fugir da solidão, ela continua seu trabalho de casa.
*O autor é barbeiro e estudante de Ciências Sociais.