CulturaDiversosNotíciasRoberto Tereziano

A janela

Do quarto isolado do hospital dois pacientes apenas notavam o passar dos dias sem qualquer outra informação externa que não fosse as poucas palavras das equipes de enfermagem que se revezavam na troca do soro ou na aplicação dos medicamentos.

Para um dos pacientes tudo ainda era pior, deitado, quase sem poder se mover, tinha apenas a possibilidade de olhar para o teto branco do quarto, pois não tinha nem sequer, força que o possibilitasse  se virar para ver o paciente que estava no leito ao lado.

Aquele, podia diariamente mudar a posição da cama hospitalar e quase sentado, alcançar a única janela do quarto, que embora lacrada pelo vidro, possibilitava ver um pedaço do mundo exterior, e olhando pela janela, descrevia para o paciente imóvel tudo que ocorria lá fora.

A manhã hoje está esplendida, o sol surge em passos lentos no firmamento e seus raios dourados pintam de ouro tudo onde a luz incide. O grande lago ao fundo mais parece um imenso espelho dourado de ondas bailantes pela força suave do vento.

O paciente que apenas podia olhar a solidão do teto branco ficava a imaginar a paisagem poeticamente descrita pelo companheiro e contava as horas da noite para que pudesse ter no dia seguinte uma nova e bela narrativa do que se podia ver pela janela.

Hoje o céu  está de um azul que seria impossível para qualquer pintor reproduzi-lo em uma tela.

A cor dominante se contrasta com o verde da montanha ao fundo, com as cores marcantes dos ipês, e pássaros em grandes revoadas dançam a saltitante valsa, como se o grande maestro do universo estivesse a reger a sinfonia das asas angelicais.

Crianças correm de um lado para outro num espaço pleno de alegria e festa. Até parece que um pedaço do paraíso se desprendeu e, se espalhou na terra diante dos meus olhos.

O encantamento do descrever a visão da janela tinha um efeito revigorante e a cada dia mais eficaz e  como um balsamo se tornara um poderoso medicamento, produzindo uma repentina reversão no estado convalescente  do paciente. A cada dia, a vontade para a vida ficava mais intensa. Uma vida que na verdade seria para ele, sobrevida, pois passaria a viver e ver o mundo com outros olhos e a amar e valorizar cada gota de orvalho, cada raio de luz, o germinar de uma semente e o desabrochar de uma flor.

Desejava ele até poder trocar de leito para olhar com seus próprios olhos pela janela, todas as manhãs que se descortinavam como se fossem espetaculares sinfonias divinas.

A dose diária de beleza narrada pelo paciente da janela produzira nele uma  vontade de viver, de se reinventar, de redescobrir o mundo. O efeito fora mais forte que sua enfermidade e, tão poderoso que surpreendera até os médicos e enfermeiros. Poderia se dizer que um grande milagre havia ocorrido.

Enquanto ele tinha sua saúde reestabelecida, pela  manhã seguinte um revés respiratório ocorrera com o paciente narrador da janela. Uma crise cárdico- respiratória o dominara e ele, assustado, apenas podia apontar para que o companheiro ao lado acionasse a campanha pedindo o socorro de um respirador artificial à equipe médica,  mas como se não pudesse alcançar o interruptor e pedir socorro para o amigo o homem  continuou imóvel olhando para o teto. Tudo que ele sonhava era em ter a possibilidade de trocar de eleito e ver o dia pela janela do hospital.

Quando a equipe médica adentrou o quarto no seu horário rotineiro  nada mais podia ser feito, a não ser, conduzir um corpo inerte para o  necrotério. Havia agora uma vaga na janela e o sobrevivente pediu para ocupa-la e pediu também que seu leito hospitalar fosse inclinado para que ele pudesse olhar o mundo exterior, e, quando vira o panorama externo seu mundo caiu. Tudo que o outro narrava das belezas vistas pela janela e suas esplendidas manhãs e entardecer eram apenas belas crônicas criadas na tentativa de estimular a sua recuperação.

Tudo que se podia ver pela janela, na verdade, era apenas um mórbido cemitério, onde dezenas de caixões em uma vala comum que mais parecia uma trincheira de guerra eram cobertos por um frio trator, e uma pequena placa com um epitáfio comum: Jazem aqui as vítimas do novo coronavírus

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site está protegido. Para compartilhar esse conteúdo, por favor utilize as ferramentas de compartilhamento da página.

error: Este site está protegido.