A Saga dos Meus Sapatos – Roberto Tereziano
Durante a escravidão o escravo era proibido de ter sapatos. Mesmo os escravos e escravas domésticas, que se vestiam melhor, não tinham permissão para usar calçados. Quando um escravo conseguia comprar sua liberdade a primeira coisa a fazer era comprar um par de sapatos, o que significava que ele era alforriado,livre. Há uma peça de teatro de Plinio Marcos em que toda a trama se desenrola na disputa por um par de sapatos, sem o qual não poderia se apresentar nos locais onde se candidatavam a ser operário.
Para os jovens de hoje pode até parecer um texto banal mas fala muito comigo. Num passado não muito distante, sapatos novos era a última preocupação de crianças pobres. Em casa, família grande, com muitos filhos, se usava sapatos já usados por outras pessoas e que nem sempre serviam corretamente. As vezes eram maiores ou menores que o número correto. Quando maiores, se colocava dentro um pedaço de jornal para ajustar o tamanho. Se menor, existiam algumas técnicas caseiras para “lacear” o calçado. A técnica mais usada era deixá-lo durante a noite, cheio de grãos de milho molhados. O milho ia se expandindo e forçava o calçado a se dilatar e no período da manhã estava um pouco mais confortável. Mas quando o calor aumentava o sapato encolhia e o usuário sofria muito, ou tirava o sapato e terminava a caminhada descalço. Se reclamasse que o sapato estava pequeno ou grande, ouvia-se dos pais a frase de consolo: “Pé de pobre não tem número”. Meu primeiro sapato novo me foi presenteado um uma de minhas professoras primárias. Dona Luzia Gaiga. Como minha redação havia sido escolhida como a melhor da classe, ela me presenteou com um vale calçado que eu troquei na loja que era da família dela.
Ainda mais tarde, trabalhei em uma histórica fabrica de calçados de Poços de Caldas. Era um tempo em que não existia , praticamente, produção de calçados em escala industrial mecanizada. Os sapatos eram montados manualmente e até personalizados.
O presidente Getúlio Vargas, por exemplo , quando estava em Poços, mandava um profissional local fazer os seus sapatos.
Um dos meus trabalhos, quando criança foi em uma fabrica que existiu na Av. João Pinheiro, pertencente a família Furchi. A marca era “Lucas” e o slogan era: “O calçado do seu filho” Um par de sapatos normal custava praticamente um salario. Não havia como uma criança pobre ter sapatos novos. Andava-se descalço, de tamancos feitos de madeira. Depois surgiram as botinas com sola de pneus, os chamados “Sapatão”, as sandálias, as alpargatas feitas de lona e sola de sisal, as congas, precursoras dos tênis, já com solas sintéticas, depois os Ki-chutes e finalmente os tênis de grifes, etc.
Como era um período de muitos casos de paralisia infantil, a fabrica era também especializada em sapatos ortopédicos. Um pé do calçado tinha altura diferente para compensar a desigualdade do deficiente. Havia também botas ortopédicas com partes mecânicas adaptadas. Feitas sob prescrição médica.
Meu segundo sapato novo aconteceu quando eu já tinha quase treze anos e trabalhava de mecânico em uma auto pista de mini carros que existiu na rua Junqueiras, local do atual Hotel das águas. O comprei com meu trabalho, mas foi furtado, praticamente, antes de usá-lo, por meninos de rua da cidade. Havia em Poços alguns meninos de rua liderados por outro maiorzinho, apelidado de “Melado”. Eles invadiram, certa noite, a casinha de manutenção dos pequenos carros e não levaram ferramentas, peças, ou coisas de valor maior, apenas o meu par de sapatos.
Durante a adolescência, tive uma amigo da policia civil de Campinas que me presenteava com coturnos da aeronautica. Mesmo que já usados eram confortabilíssimos e ainda duravam muito. Junto ao calçados sempre vinham boinas usadas pela polícia civil de São Paulo. Porem em pleno regime militar o simples uso de tais assessórios traziam sério risco para a segurança nacional. Os olheiros da ditadura já entendiam que você era que nada sabia de Marx ou Engel era simpatizante de Che Guevara. Uma das profissões importantes e que está quase desaparecendo era de sapateiro.
Os profissionais reconstruiam um calçado. Colocavam novos saltos, sola inteira, meia sola, etc.
Hoje, o processo industrial democratizou o uso de calçados. Não se vê mais crianças descalças. Ainda existem os sapatos e tênis de marcas e que custam muito caro, mas há também as grifes “Made In China” e que custam preços de banana do Paraguai. Hoje, tenho até sapateira, escolho diariamente entre mais de uma dezena de pares qual calçados quero para aquele dia. Porem não me esqueço da saga pela qual muitas crianças passaram para ter um par de calçados. Tive uma amiga brasileira em Boca Raton, Flórida, no condado de Palm Beach, Estados Unidos, que comentava que quando moravam no Brasil chegavam a usar o sapato uma única vez e os abandonavam.
Depois os sapatos nacionais não agradavam mais, passaram a usar importados. Depois o país não servia mais, se mudaram para os Estados Unidos e, com todo o dinheiro e luxo não tinham o meu prazer diário de pequenos gestos de escolher, hoje, que sapato quero usar. RT
Muito bom o texto!
Passei por estes mesmos vexames com sapatos comprado na feira de água de meninos Bahia. Ouvindo sempre do nosso pai que
pé de pobre não tinha numero.
Já trabalhando comprei o meu primeiro par de alpargatas, tendo sido um dos meus maiores feitos a época da minha vida.
Porém hoje me dou ao luxo de usar um par por dia que mais parece uma caixa de algodão ao calcar.
Grato / Reginaldo
Amigo, o que mais me alegra é que tais dificuldades não nos fizeram desistir ou nos perder. Um grande abraço.
Amei a história dos sapatos, o nível de dificuldade que os menos favorecidos enfrentavam no passado. Um grande abraço Roberto.